ATLAS COMO FORMA DE APROXIMAÇÃO Qualquer um que tenha realizado um trabalho de pesquisa – em ciências sociais aplicadas ou qualquer outra área - sabe que a capacidade de síntese será sempre fundamental. Na sociedade da informação em que vivemos hoje esta capacidade tem se mostrado crucial: simplificação, generalização e síntese são as únicas formas de navegar por um universo desmesurado de dados. Esta quantidade infinita de informação e a possibilidade de utilizar recursos cartográficos como forma de construir modelos que ajudem na compreensão dos fenômenos urbanos, nos remetem a dois contos do genial escritor argentino Jorge Luis Borges, que podem deixar ainda mais clara a importância que o Projeto Atlas Histórico de Cidades reivindica para o uso dos recursos gráficos no estudo da história da cidade e do urbanismo. No primeiro, encontramos a um indivíduo cuja capacidade de memória é tão grande que sua capacidade de generalização desaparece. Funes – o personagem de Borges – é o exemplo extremo de uma quantidade desorbitada de informações unida a uma ausência de capacidade de síntese. Assim descreve Borges a Funes: “(…) Sabía las formas de las nubes australes del amanecer del 30 de abril de 1882 y podía compararlas en el recuerdo con las vetas de un libro en pasta española que sólo había mirado una vez y con las líneas de la espuma que un remo levantó en el Río Negro la víspera de la acción del Quebracho (…) Dos o tres veces había reconstruido un día entero; no había dudado nunca, pero cada reconstrucción había requerido un día entero. (…) En efecto, Funes no sólo recordaba cada hoja de cada árbol de cada monte, sino cada una de las veces que la había percibido o imaginado. (…) No sólo le costaba comprender que el símbolo genérico perro abarcara tantos individuos dispares de diversos tamaños y diversa forma; le molestaba que el perro de las tres y catorce (visto de perfil) tuviera el mismo nombre que el perro de las tres y cuarto (visto de frente). (…) Había aprendido sin esfuerzo el inglés, el francés, el portugués, el latín. Sospecho, sin embargo, que no era muy capaz de pensar. Pensar es olvidar diferencias, es generalizar, abstraer. En el abarrotado mundo de Funes no había sino detalles, casi inmediatos...” Funes el memorioso. Jorge Luis Borges. No Brasil os estudos de história urbana e história da arquitetura levaram, nos últimos anos, à produção de uma grande quantidade e variedade de monografias que se destacam, como afirma Feldman (1999), por uma valorização da informação documental em contra de uma aproximação metodológica mais afinada com a disciplina histórica. Ou seja, temos realizados esforços para a recuperação de relatórios, material iconográfico, planos, etc., sem que todo este esforço seja acompanhado de sínteses ou generalizações indispensáveis para o entendimento histórico da cidade e da arquitetura. Esta busca e organização de informação não é por si nefasta. Mas a produção teórica, nela baseada, não tem sido capaz de marcar a necessária distância do dado; aquela que permite uma visualização de conjunto, uma generalização, uma organização do pensamento. A representação gráfica, resultante destes trabalhos, refletem igualmente esta incapacidade de elaboração. Não sugerem um juízo, uma tese, uma generalização, uma síntese ou enfim, um modelo. As infinitas séries de mapas temáticos apresentados como resultados de um longo e laborioso trabalho de investigação – vejamos algumas apresentações públicas de planos diretores de cidades – logram distanciar e eliminar a nossa já reduzida capacidade de percepção da cidade. São tantas as informações apresentadas que para sua compreensão necessitaríamos do tempo que foi necessário para sua elaboração. No segundo conto temos a descrição de procedimentos de uso da representação gráfica que afastam, na medida em que parece ser cada vez mais precisa, o objeto de seu modelo, de sua esquematização, de sua simplificação, enfim, da síntese: “(...)En aquel Imperio, el Arte de la Cartografía logró tal perfección que el mapa de una sola Provincia ocupaba toda una Ciudad, y el mapa del Imperio, toda una Provincia. Con el tiempo, esos mapas desmesurados no satisficieron y los Colegios de Cartógrafos levantaron un mapa del Imperio que tenía el tamaño del Imperio y coincidía puntualmente con él. Menos adictas al estudio de la Cartografía, las generaciones siguientes entendieron que ese dilatado mapa era inútil y no sin impiedad lo entregaron a las inclemencias del sol y de los inviernos. En los desiertos del oeste perduran despedazadas ruinas del mapa, habitadas por animales y por mendigos; en todo el país no hay otra reliquia de las disciplinas geográficas.” Suárez Miranda: Viajes de varones prudentes, libro cuarto, cap. XLV, Lérida, 1658. Del Rigor de la Ciencia. In: El Hacedor. Jorge Luis Borges (1899-1986) Quero acreditar que não vivemos, ainda, uma situação como esta criada por Borges. Mas os painéis gigantes que podemos ver cobrindo fachadas inteiras de edifícios, principalmente em obras de restauração, e que reproduzem um desenho da fachada restaurada, não seria, de certa forma, sinal de que nos encaminhamos a uma “perfeição” comparável ao do Colégio de Cartógrafos do Império citado por Borges através de Suárez Miranda em seu livros de viagens? Ou, o que é muito mais grave, não poderíamos concluir que alcançamos uma “perfeição” ainda maior ao substituir, e não apenas representar em forma de mapa, as edificações por representações delas mesmas? Afinal em que estamos transformando nossos centros históricos senão em representações cenográficas deles mesmos com o agravante de que utilizamos o próprio centro histórico como suporte desta representação? Assim, para evitar um tipo de procedimento que poderíamos chamar “arquivismo compulsivo” ou “representações realistas”, é necessário uma atenção às aproximações verificadoras e comparativas. A primeira no sentido de vincular o dado documental com o objeto mesmo da disciplina – a cidade e o seu tempo – e a segunda como forma de compreender os processos urbanos locais como parte de uma realidade urbana regional, territorial e global. Não se trata somente de propor procedimentos para a utilização de cartografias históricas, iconografias de cidades, dados estatísticos e gráficos para a recuperação e a representação de realidades históricas espacialmente referenciáveis. A discussão e organização de procedimentos metodológicos gráficos, como instrumentos para o estudo da história da arquitetura e da história urbana, deve servir principalmente para que possamos vislumbrar caminhos de aproximação com a realidade que se caracterizem pela capacidade verificadora, crítica e comparativa. Xico Costa
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Subsídios ao estudo comparado na história urbana. Barcelona e Salvador
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