O olhar navega.

Mercedez Alvarez

[In: VI Encuentro Nuevos Autores. Semana Internacional de Cine. Valladolid: 2004. Tradução: XCosta]

Nós, os expectativos e apressados cidadões do século XXI, vivemos num mundo de produção acelerada de imagens. Imagens informativas, publicitárias, didáticas ou sermoneiras. Imagens históricas ou fictícias, reais ou virtuais, fixas ou em movimento, emotivas, impactantes e também precipitadas. Em geral existe algo comum e endemoniado que une a todas: num espaço saturado, reclamam atenção e procuram impor sua visão imediata e insistente. Todas parecem ter pressa para dizer alguma coisa. Poucas sabem calar e deixar-se olhar. Quase nenhuma permite o luxo de deixar as pessoas em paz. No cinema, na televisão e inclusive na fotografia de imprensa, essas imagens foram se enchendo de tanta intencionalidade que, a final, acabaram usurpando o olhar do espectador; tomaram seu papel. E, o mais paradoxal, o espectador atual parece haver esquecido que pode reivindicar este poder. Esqueceu que o olhar é o primeiro e o mais genuíno direito do espectador.

Talvez o documentário, tão antigo quanto as primeiras imagens de Lumière, possa escapar a esse destino e soltar as amarras do olhar, deixar que o olhar navegue. Hoje, associado convencionalmente a um modo canonizado de relacionar texto e imagem, o documentário é um instrumento auxiliar do jornalismo ou da sociologia. Utiliza regras gramaticais de discurso que serviriam invariavelmente para criar reportagens de televisão, crônicas, histórias, materiais didáticos, relatos de viagens ou programas científicos. Converteu-se em um gênero cujas regras de discurso – seu pacto com o espectador e com a realidade – não necessitam ser questionadas.

No entanto, existe outra tradição no cinema. O documentário de autor, se é que podemos chamar assim, que tratou sempre de alargar e restituir o poder do olhar à salvo de toda convenção e, sobretudo, da maior convenção de todas: essa que chamamos realidade. A esse tipo de documentário não lhe assusta por em jogo a subjetividade nem tratará de esconder o ponto de vista; se servira, quando preciso, do diálogo com o fictício, com o hipotético ou com o imaginário; empregará as vezes o discurso obliquo ou o comentário, mas sem a pressa por estabelecer uma tese ou chegar a uma conclusão; e, sobretudo, o autor não apenas oferecerá seu olhar, mas deixará os vestígios de sua impotência, tratando de recompor a realidade com ajuda do olhar do espectador. Tudo isso sem evitar, em nenhum instante, aquilo que deve ser próprio de todo documentário: dar notícia daquilo, à margem e mais além da câmara, daquilo que não tem uma origem nem um destino cinematográfico.

Os diferentes caminhos seguidos pelo cine documental vão unidos historicamente ao esforço de autores interessados em refundar a cada momento o olhar. Vão unidos também, com frequência, à ruptura com os sistemas de criação e produção dominantes. Captando a vida de improviso, Vertov engrandeceu o cine concebendo-o como uma escritura onde cabe o ensaio, o poema visual, o cinema retrato e o documento histórico. Flaherty estabeleceu de uma vez as possibilidades da vida colocada em cena, o valor da representação como documento, mas sempre por amor ao real. Vigo introduziu o ponto de vista documentado. Cris Marker, que reagiu contra a pretendida objetividade documental do cinemá-verité, foi um dos autores que mais contribuíram a reduzir a distância entre imagens registradas e imagens construídas. Do mesmo modo em que Rosselini, Renoir, os cineastas da nouvelle vague, Eustache, Pialat, Erice o Kiarostami filmaram conscientes desta difusa fronteira que separa a ficção do documentário, num diálogo permanente e tão antigo como o cinema mesmo.

Dentro do debate sobre documentário e ficção, acredito que o documentário aporta um momento único, verdadeiro. Se existe ficção, somente ficção, sinto falta da marca do real. E um documentário que atendesse unicamente a vida captada de improviso poderia ser emocionante em momentos pontuais, mas teria dificuldades para mostrar o transcurso do tempo. A lógica da ficção pode então vir em sua ajuda e mostrar os fatos projetados no tempo.